A aprendizagem da matemática
Esther Pillar Grossi
É importante apoiar-se no que já foi acumulado a respeito da alfabetização como referência positiva para outras disciplinas, em particular para a matemática. Vamos a ela!
Sendo a matemática a ciência das relações lógicas, estabelecidas pela inteligência humana, temos que nos dar conta que matematizar é possível a qualquer um e que a matéria prima para tal se encontra na possibilidade do ser humano detectar vínculos de coerência entre os dados da realidade que capta. Fazer matemática é distinguir a presença ou a ausência de lógica no estabelecimento de relações.
Matemática é, portanto, muito mais que o campo dos números, este, aliás, é bem matemático, uma vez que a propriedades quantitativas dos conjuntos são uma apreensão presentes nas mais variadas circunstâncias de vida com uma construção do intelecto. A riqueza e a complexidade dos diversos conjuntos numéricos, a começar pelos números naturais ( N ), os inteiros ( Z), o racionais ( O) e os reais ( R) desafiam os habitantes da contemporaneidade em todas as latitudes do globo.
Os números dão conta da quantidade dos elementos de conjuntos discretos ou contínuos com os quais as crianças se deparam desde a mais tenra idade. Os conjuntos contínuos são aqueles para os quais a unidade é definida pelos seus próprios elementos. Os conjuntos contínuos são aqueles para os quais é necessário construir uma medida como unidade, uma vez que entre seus elementos não há descontinuidade discriminatórias. Comprimentos, superfícies, volumes, peso e tempo são exemplos que demonstram continuidade entre os seus constituintes.
Para chegar a ler e a escrever, embora a lógica do sistema de escrita se baseie na junção de letras para formar sílabas para formar palavras, destas para formar frases e de frases para formar textos, uma boa trajetória de alfabetização envolve, simultaneamente, letras, palavras, frases e textos. Em matemática, igualmente, o aluno não começa por um conjunto numérico para gradativamente ir se introduzindo nos demais. E ainda mais, no conjunto dos números naturais, o qual compreende os números que comumente usamos para contar (0, 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11...), as crianças não se restringem, inicialmente, a somente considerar números pequenos, como prevê a programação escolar convencional.
Da mesma forma que na alfabetização, os alunos se defrontam com situações de vida em que estão presentes aspectos de vários conjuntos numéricos e sem limite superior preestabelecido. É falsa e artificial a intenção pedagógica de restringir o espaço de aprendizagem matemática, por exemplo, até o número 9, depois até 99, etc., quando um amplo espectro dos números naturais está envolvido nas situações de vida dos alunos desde pequeninos. Além do mais, nessas vivências do aluno entram em jogo tanto números naturais como inteiros, isto é, relativos (positivos e negativos) e fracionários. São inúmeros os estudos de pesquisadores sobre ensino e aprendizagem de matemática em que se evidencia a falácia de se imaginar uma gradação possível de acesso ao mais complexo pela trilha limpa de uma seqüência planejada pelo currículo escolar.
É importante desmistificar a confusão, muito comum nos meios pedagógicos, muitas vezes em busca da integração das disciplinas, de que se está ensinando matemática cada vez que alguma situação de sala de aula aparece e evidencia aspectos numéricos. O aparecimento, aliás inevitável, de aspectos quantitativos na maior parte das situações de vida e sua explicitação não significam, necessariamente, situações de ensino matemático. Muito particularmente, em Didáticas da Alfabetização, de minha autoria, a exploração do número de letras das palavras, por exemplo, não pode ser incluída em um programa de aprendizagem matemática. Ela tem por objetivo a análise de aspectos lingüísticos que ajudam a caracterizar as palavras, mas, na maioria dos casos, não enriquece em nada a bagagem propriamente matemática dos alunos que, nesta altura, sabem contar com certa desenvoltura para além de uma dezena e muitos deles têm certa familiaridade com a escrita de números. Atividade didática digna do adjetivo “matemática” é aquela em que o aluno é desafiado a ampliar seu universo de conhecimento sobre esta disciplina.
Além disso, ampliar conhecimentos não é memorizar informações. É, isso sim, ampliar sua capacidade de estabelecer relações entre os diversos elementos que interferem nesse campo de aprendizagem. É impossível selecionar e dirigir, por deliberação docente, quais e quantos elementos devem ser oferecidos sucessivamente para os alunos, regulando de fora para dentro sua aproximação com a complexidade dos conhecimentos científico. O que de fato ocorre é um contato mais amplo com tais elementos do que a capacidade lógica do sujeito pode dar conta de um ponto de vista global, mergulhando-o em um caos.
Como o caos cognitivo é insuperável, para além de um curto espaço de tempo, o sujeito o organiza relacionando elementos disponíveis de forma precária, o que constitui os denominados níveis sóciopsicogenéticos. Eles nada mais são o que o resultado de uma estruturação lógica que se caracteriza por sua incompletude e parcialidade. Essas ocorrem ou porque na organização do sistema lógico o sujeito não incorpora todos os elementos concernidos, isto é, ignora estrategicamente alguns, ou porque, dentre os que são considerados, não estabelece todas a relações possíveis.
A falta de consideração de todos os elementos pode ser devida à trajetória de conceitualização que ocorre em cada etapa de organização operatória do pensamento. Essa trajetória se dá a partir das duplas, que são formações mentais primitivas em que os futuros conceitos não estão isolados, mas amalgamados. Tratase de um dinâmica muito singular entre os elementos, que o sujeito da aprendizagem considera como universo do seu campo conceitual em que eles não são formados como átomos, mas são abordados enquanto parte de uma molécula, que é a dupla.
As duplas, por sua vez, não são isoláveis, porque um mesmo átomo pode pertencer a várias moléculas. A formação das duplas obedece a critérios diversos, entre os quais predomina a semelhança, a diferença ou a contradição e a complementaridade. Os átomos, ou seja, os elementos candidatos a se transformarem em categorias nesses estágio do pensar por duplas, ora se excluem mutuamente, sem possibilidade de explicitar entre eles vínculo lógico, ora nem sequer existem em si mesmos, senão dentro da dupla.
Por esta razão, as relações entre eles gozam de precariedade, a não ser algumas entre elas, as quais constituem o arcabouço da estrutura do nível sóciopsicogenético do momentos. Tudo indica que o nível sóciopsicogenético corresponde a um sistema lógico em que as relações entre os elementos que o caracterizam têm certa estabilidade e consistência, isto é, se constituem como uma organização em que as partes se harmonizam. As diferenças entre um nível e outro mais elevado são marcadas pelo enriquecimento de elementos que se desamalgamaram rumo ao estatuto de categoria e à complexificação da trama de suas relações internas.
Didaticamente, uma posição pósconstrutivista, consiste na consideração como algo fundante do ensinar a caracterização do nível sóciopsicogenético em que se encontra cada aluno no trajeto rumo ao conjunto de conceitos que define um objetivo didático. Quando nos referimos a conjunto de conceitos e a campo conceitual, é possível perceber que campo conceitual envolve conceitos, um conjunto deles, mas que uma e outra noção não são sinônimas.
Um campo conceitual compreende conceitos como fim do processo, durante o qual eles são seus embriões, os quais funcionam na comunidade de duplas, que são regidas por situações e procedimentos em um contexto definitório de representações simbólicas. Os conceitos só se explicitam no final do trajeto porque se despegam das circunstâncias espaciais (situações) e temporais (procedimentos) nas quais eles se presentificam ao longo percurso e estabilizam a carga libidinal que sustentou o trânsito de constituição de um esquema estável de uma representação simbólica, que se associa aos conceitos.
E com a matemática como é que se faz?
Maria Celeste M. Koch
Trabalhar com a proposta pós-construtivista é um fascínio. O professor começa a estudar a Psicogênese da leitura e da escrita e passa a ver ao vivo e as cores o caminho das crianças na descoberta das relações da escrita com os sons. A teoria que embasa esta proposta é o Ovo de Colombo. Ela é óbvia: como a criança vai tendo sua próprias idéias de como se lê e se escreve (quando leitura e escrita fazem parte de seu cotidiano), é fazer acontecer, criando um ambiente alfabetizador, permitindo que as crianças leiam e escrevam de seu jeito, propondo problemas que as façam avançar em suas próprias idéias.
É fascinante também a caminhada do professor, suas soluções e descobertas, neste fazer acontecer e no desafio de coordenar as “ diferentes autorias” dos alunos e dos grupos com a sua própria autoria.
No primeiro ano de trabalho, com esta metodologia as descobertas do professor e dos alunos são tão empolgantes que o entusiasmo fermenta a criatividade da ação didática.
Esta acontece, muitas vezes, como “ teorema em ação” ( 1), pois vai se estruturando na própria solução de problemas do dia-a-dia, tanto do professor como dos alunos.
Em um segundo ano de trabalho com esta proposta, o professor pode antecipar a ação didática refletindo sobre a experiência anterior. Em geral, o professor se pergunta: O que realmente foi decisivo para que a experiência desse certo? Por que com algumas crianças os resultados ainda não deram totalmente certo? O que poderia ter sido feito? O que posso fazer desde o início do ano para começar a resolver os problemas mais adequadamente? Quais as melhores intervenções que fiz? Em que momentos elas frutificaram? Por quê?
Muito provavelmente ocorre aos professores a seguinte pergunta: E com a matemática, como é que se faz? Será que estou permitindo que avancem em suas descobertas? Como se dá o processo de aprendizagem da matemática?
Essa pergunta, em especial, nos revela a caminhada do professor que busca explicar outras questões, “outra realidade” do seu papel de ensinar. Ele passa a se “dar conta” de que, se a criança descobre a escrita da língua falada, pode (e deve) fazer o mesmo com a matemática.
Realmente, a crianças de classes populares têm, em geral, muito mais experiência no cotidiano com a matemática e com os números do que com a leitura e escrita da língua. Portanto, devem ter muito mais idéias no campo da matemática do que sobre a língua escrita na escola.
Há estudos que nos dão embasamento para entender a estrutura lógica do pensamento do aprendente. É com esse pensamento lógico, que está se estruturando, que ele descobre e constrói conhecimentos como a da matemática e da alfabetização.
Aprender é uma construção do sujeito ao resolver problemas Na ótica pósconstrutivista, aprender é uma construção do sujeito que resolve problemas em relação a um objeto do conhecimento, isto é, um aspecto da realidade que ele busca compreender e representar.
Para Gérard Vergnaud, a compreensão da realidade, pelo sujeito, se dá no nível do significado (pensamento, idéias, concepções) e dos significantes (linguagem, ação, representação propriamente dita). Sendo assim, é fundamental, também em relação à matemática, que o sujeito que nos interessa pedagogicamente possa ter idéias e expressá-las à sua maneira.
Rodrigo queria escrever 340 e perguntou e se podia fazer “cem por cem”. E escreveu:
100
100
100
40
Sua solução expressa uma idéia aditiva deste número, original e inteligente, embora com “erros construtivos”. Nós, professores, devemos aprender sobre o processo desta construção dos alunos, enquanto eles aprendem matemática. Destas duas diferentes aprendizagens depende o sucesso do trabalho docente.
O papel do professor é intervir para a construção do conhecimento Ensinar matemática não é nem explicar detalhadamente (de fora para dentro) para os alunos e nem esperar que eles tenham a estrutura de pensamento pronta, para então ensiná-la.
Nem é necessário treinar e trabalhar visando apressar tal estruturação de pensamento. O nosso papel, como professores, é intervir para a construção do conhecimento que, quanto mais abrangente for, mais elementos fornecerá para a própria estruturação do pensamento.
O aluno não aprende sozinho (daí a grande importância da escola): ele aprende resolvendo problemas do cotidiano, refletindo sobre o que observa, no confronto com as soluções e idéias dos outros – dentro e fora da sala de aula e da escola. A idéia de número é um exemplo típico deste aprender: comparar conjuntos discretos, relacionar, ordenar, comprar, vender, etc, fazem parte dos problemas que as pessoas tentam resolver no seus dia-a-dia.
A contagem, por exemplo, é um instrumento que se usa para determinar quantidades, inclusive em jogos infantis.
Ações e relações como essas devem ser institucionalizadas na escola, para conduzir à construção da idéia de número pelo aluno. Nas investigação no Geempa, desde 1987, sobre a Gênese da construção do número, com as crianças das primeiras séries das escolas da periferia de Porto Alegre foi reafirmada a complexidade desse processo de representação do número, que abarca diversos “ramos” relacionados com significados, significantes e operações.
Começar a entender esses processos em matemática é um ponto de partida para estender a proposta didática usada para a alfabetização que o professor demanda, ao vislumbrar que a criança pode ter “ suas idéias” também em relação a matemática. Cada professor deve construir uma rede teórica que sustente internamente sua caminhada, quando passa a ser “autor” e “coordenador de autorias”, para ensinar matemática. Quanto mais forte e flexível essa rede, melhor será sua performance: é como caminhar em terra firme de um jeito muito emocionante!
Extraído de: Grossi, Esther Pillar; Vergnaud, Gérard & Koch, Maria Celeste. Por onde começar o ensino de matemática? Fórum Social pelas Aprendizagens – 2006. Porto Alegre: GEEMPA.
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